Meu Deus eu Creio, Adoro, Espero e Amo-Vos. Peço-Vos perdão para todos aqueles que não creem, não adoram, não esperam e não Vos amam.

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Formação Católica

13 maio 2017

FRANCISCO MARTO - MEMÓRIAS DA IRMÃ LÚCIA




RETRATO DE FRANCISCO
 Espiritualidade.

Vou, pois, começar, Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo, por escrever o que o bom Deus me queira fazer lembrar do Francisco. Espero que Nosso Senhor lhe faça conhecer, no Céu, o que a seu respeito
escrevo na terra, para que, junto de Jesus e Maria, interceda por mim, em especial nestes dias. A amizade que me unia ao Francisco era apenas a de parentesco e a que consigo traziam as graças que o Céu se dignava conceder-nos.

O Francisco não parecia irmão da Jacinta senão nas feições o rosto e na prática da virtude. Não era, como ela, caprichoso e vivo; era, ao contrário, de natural pacífico e condescendente. Quando, nos nossos (jogos) e brincadeiras, algum se empenhava em negar-lhe os seus direitos por ter ganhado, cedia sem resistência, limitando-se a dizer apenas: – Pensas que ganhaste tu? Pois sim! A mim isso não me importa. Não manifestava, como a Jacinta, a paixão pela dança; gostava mais de tocar o pifarito, enquanto os outros dançavam.

Nos jogos, era bastante animado, mas poucos gostavam de jogar com ele, porque perdia quase sempre. Eu mesma confesso que simpatizava pouco com ele, porque o seu natural pacifico excitava, por vezes, os nervos da minha demasiada vivacidade. Às vezes, pegava-lhe por um braço, obrigava-o a sentar-se no chão ou em alguma pedra, mandava-lhe que estivesse quieto e ele obedecia-me, como se eu tivesse uma grande autoridade.

Depois, sentia pena, ia buscá-lo pela mão e vinha com o mesmo bom humor, como se nada tivesse acontecido. Se alguma das outras crianças porfiava em tirar-lhe alguma coisa que lhe pertencesse, dizia: – Deixa lá! A mim que me importa?

Recordo que chegou, um dia, a minha casa com um lenço do bolso, com Nossa Senhora de Nazaré pintada, que dessa praia acabavam de lhe trazer. Mostrou-mo com grande alegria e toda aquela criançada o veio admirar. De mão em mão, a poucos instantes, o lenço desapareceu. Procurou-se, mas não se encontrava. Pouco depois, descobri-o no bolso dum outro pequeno. Quis-lho tirar, mas ele porfiava que era dele, que também Iho tinham trazido da praia. Então, o Francisco, para acabar com a contenda, aproximou-se, dizendo: – Deixa-o lá! A mim que me importa o lenço? Parece-me que, se houvesse crescido, o seu defeito principal seria o de não-te-rales.


Quando, aos 7 anos, comecei a pastorear o meu rebanho, ele pareceu ficar indiferente. Lá ia, à noite, esperar-me com a sua irmãzinha, mas parecia ir mais para lhe fazer a vontade que por amizade. Iam esperar-me no pátio de meus pais. E enquanto a Jacinta corria a meu encontro, logo que sentia os chocalhos do rebanho, ele esperava-me sentado nuns degraus de pedra que havia em frente da porta de casa. Depois, lá ia connosco, para a velha eira, a brincar, enquanto esperávamos que Nossa Senhora e os Anjos acendessem as Suas candeias. Animava-se também a contá-las, mas nada o encantava tanto como o lindo nascer e pôr-do-sol. Enquanto deste se avistava algum raio, não investigava se já havia alguma candeia acesa. – Nenhuma candeia é tão bonita como a de Nosso Senhor – dizia ele à Jacinta que gostava mais da de Nossa Senhora, porque, dizia ela, não faz doer a vista. E entusiasmado seguia com a vista todos os raios que, dardejando nos vidros das casas das aldeias vizinhas ou nas gotas de água espalhadas nas árvores e matos da serra, (os) faziam brilhar como outras tantas estrelas, a seu ver mil vezes mais bonitas que as dos Anjos.

Quando, com tanta insistência, pediu à mãe que o deixasse ir com o seu rebanho para andar comigo, era mais bem por fazer a vontade à Jacinta que gostava mais dele que de seu irmão João. Um dia que a mãe, já pouco contente, lhe negava essa licença, respondeu com a sua paz natural: – A mim, minha Mãe, pouco me importa. A Jacinta é que quer que eu vá.

Em outra ocasião, confirmou isto mesmo. Veio a minha casa uma das minhas antigas companheiras convidar-me para ir com ela, pois tinha, para esse dia, uma boa pastagem. Como o dia se apresentava fosco, fui a casa de minha tia perguntar se ia o Francisco com a Jacinta ou se ia seu irmão João, porque, no caso de ir este último, preferia a companhia da outra antiga companheira.

Minha tia tinha já decidido que, aquele dia, por estar de chuva, ia o João. Mas o Francisco quis ir ainda junto da mãe fazer uma nova insistência. Ao receber um não, seco e sacudido, respondeu:
– A mim, tanto me dá. A Jacinta é que tem mais pena. 

Inclinações naturais

No que ele se entretinha mais, quando andávamos pelos montes, era, sentado no mais elevado penedo, a tocar o seu pífaro ou a cantar. Se a sua irmãzinha descia para comigo dar algumas corridas,
ele lá ficava entretido com as suas músicas e cantos. O que ele cantava com mais frequência era:

Coro
Amo a Deus no céu. 
Amo (-O) também na terra.
Amo o campo, as flores. 
Amo as ovelhas na serra.
Sou uma pobre pastora, 
Rezo sempre a Maria.
No meio do meu rebanho, 
Sou o sol do meio-dia.
Com os meus cordeirinhos, 
Eu aprendi a saltar.
Sou a alegria da serra, 
Sou o lírio do vale.

Nos jogos, tomava parte sempre que a isso o convidávamos, mas, às vezes, manifestava pouco entusiasmo, dizendo: – Vou, mas já sei que perco. Os jogos que sabíamos e em que nos entretínhamos eram: o das pedrinhas, o das prendas, passar o anel, o do botão, o fito, a malha, as cartas, jogar a bisca, descobrir os reis, os condes e as sotas, etc.

Tínhamos dois baralhos: um meu, outro deles. O jogo preferido pelo Francisco era o das cartas, a bisca.

Participação nas Aparições do Anjo

Na aparição do Anjo, prostrou-se como sua irmã e eu, levado por uma força sobrenatural que a isso nos movia; mas a oração aprendeu-a ouvindo-nos repeti-la, pois, ao Anjo, dizia não ter ouvido
nada.

Quando, depois, nos prostrávamos para rezar essa oração, ele era o primeiro que se cansava da posição, mas permanecia de joelhos ou sentado, rezando também, até que nós acabássemos.

Depois, dizia:
– Eu não sou capaz de estar assim tanto tempo como vocês. Doem-me as costas tanto que não posso.

Na segunda aparição do Anjo, no poço, perguntou, passados os primeiros momentos que se Ihe seguiram:

– Tu falaste com o Anjo; que é que Ele te disse?
– Não ouviste?
– Não. Vi que falava contigo, ouvi o que tu Ihe disseste, mas o
que Ele te disse não sei.

Como a atmosfera do sobrenatural em que Ele nos deixava ainda não tinha de todo passado, disse-lhe que mo perguntasse no dia seguinte, ou à Jacinta. – Jacinta, conta-me tu o que disse o Anjo.
– Digo-to amanhã. Hoje não posso falar.

No dia seguinte, logo que chegou junto de mim, perguntou--me: – Dormiste esta noite? Eu pensei sempre no Anjo e no que seria que Ele disse. 

Contei-lhe, então, tudo o que o Anjo tinha dito na primeira e segunda aparição. Mas ele parecia não ter recebido a compreensão do que as palavras significavam e perguntava: – Quem é o Altíssimo? Que quer dizer: os Corações de Jesus e Maria estão atentos à voz das vossas súplicas? Etc.

E, obtida a resposta, ficava-se pensando, para logo interromper com outra pergunta. Mas o meu espírito ainda não estava de todo livre e disse-lhe que esperasse para o dia seguinte, que naquele
ainda não podia falar. Esperou, contente, mas não deixou perder as primeiras ocasiões, para logo fazer novas perguntas, o que levou a Jacinta a dizer-lhe: – Olha: nessas coisas fala pouco. Quando falávamos no Anjo, não sei o que sentíamos. A Jacinta dizia: – Não sei o que sinto; já não posso falar, nem cantar, nem brincar e não tenho força para nada.
– Eu também não – respondeu o Francisco. – Mas que importa? O Anjo é mais bonito que tudo isso. Pensemos n’Ele.

Na terceira aparição, a presença do sobrenatural foi ainda muitíssimo mais intensa. Por vários dias, nem mesmo o Francisco se atrevia a falar. Dizia depois: – Gosto muito de ver o Anjo; mas o pior é que, depois, não somos capazes de nada.

Eu nem andar podia, não sei o que tinha! Apesar de tudo, foi ele quem se deu conta, depois da terceira aparição do Anjo, das proximidades da noite. Foi quem disso nos advertiu e quem pensou em conduzir o rebanho para casa. Passados os primeiros dias e recuperado o estado normal, perguntou o Francisco: – O Anjo, a ti, deu-te a Sagrada Comunhão; mas a mim e à Jacinta, que foi o que Ele nos deu? – Foi também a Sagrada Comunhão – respondeu a Jacinta, numa felicidade indizível. – Não vês que era o Sangue que caía da Hóstia?

– Eu sentia que Deus estava em mim, mas não sabia como era! E prostrando-se por terra, permaneceu por largo tempo, com a sua Irmã, repetindo a oração do Anjo: Santíssima Trindade..., etc. Pouco a pouco, foi passando aquela atmosfera e, no dia 13 de Maio, brincávamos já quase com o mesmo gosto e com a mesma liberdade de espírito.

Influência da primeira Aparição de Nossa Senhora

A aparição de Nossa Senhora veio de novo a concentrar-nos no sobrenatural, mas mais suavemente: em vez daquele aniquilamento na Divina Presença, que prostrava, mesmo fisicamente, deixou-nos uma paz e alegria expansiva que nos não impedia falar, em seguida, de quanto se tinha passado. No entanto, a respeito do reflexo que Nossa Senhora, com as mãos, nos tinha comunicado e de tudo que, com ele, se relacionava, sentíamos um não sei quê interior que nos movia a calar.

Contamos, em seguida, ao Francisco, tudo quanto Nossa Senhora tinha dito. E ele, manifestando o contentamento que sentia, na promessa de ir para o Céu, cruzando as mãos sobre o peito, dizia:
– Ó minha Nossa Senhora, terços, rezo todos quantos Vós quiserdes. E, desde aí, tomou o costume de se afastar de nós, como que passeando; e se chamava por ele e Ihe perguntava que andava a fazer, levantava o braço e mostrava-me o terço. Se Ihe dizia que viesse brincar, que depois rezava connosco, respondia: – Depois também rezo. Não te lembras que Nossa Senhora disse que tinha de rezar muitos terços? Um dia, disse-me: – Gostei muito de ver o Anjo, mas gostei ainda mais de Nossa Senhora. Do que gostei mais foi de ver a Nosso Senhor, naquela luz que Nossa Senhora nos meteu no peito. Gosto tanto de Deus!

Mas Ele está tão triste, por causa de tantos pecados! Nós nunca havemos de fazer nenhum. Já disse, no segundo escrito sobre a Jacinta, como foi ele que me deu a notícia de que ela tinha faltado ao nosso contrato de não dizer nada. E como era de meu parecer que se guardasse segredo, acrescentou, com ar triste: – Eu, como minha Mãe me perguntou se era verdade, tive que dizer que sim, para não mentir. Por vezes, dizia: – Nossa Senhora disse que íamos a ter muito que sofrer! Não me importo; sofro tudo quanto Ela quiser! O que eu quero é ir para o Céu.

Um dia que eu me mostrava descontente com a perseguição que dentro e fora da família se começava a levantar, ele procurou animar-me, dizendo: – Deixa lá. Não disse Nossa Senhora que íamos a ter muito que sofrer, para reparar a Nosso Senhor e o Seu Imaculado Coração, de tantos pecados com que são ofendidos? Eles estão tão tristes! Se com estes sofrimentos os pudermos consolar, já ficamos
contentes.

Poucos dias depois da primeira aparição de Nossa Senhora, ao chegar à pastagem, subiu-se a um elevado penedo e disse-nos: – Vocês não venham para aqui; deixem-me estar sozinho. – Está bem.
E pus-me, com a Jacinta, atrás das borboletas que apanhávamos, para logo fazer o sacrifício de deixar fugir, e nem mais do Francisco nos lembrou. Chegada a hora da merenda, demos pela sua falta, e lá fui a chamá-lo: – Francisco, não queres vir a merendar? – Não. Comam vocês. – E a rezar o terço?
– A rezar, depois vou. Torna-me a chamar. Quando voltei a chamá-lo, disse-me: – Venham vocês a rezar aqui pró pé de mim. Subimos para o cimo do penedo, onde mal cabíamos os três de joelhos, e perguntei-lhe: – Mas que estás aqui a fazer tanto tempo? – Estou a pensar em Deus que está tão triste, por causa de tantos Recados! Se eu fosse capaz de Lhe dar alegria!

Um dia, colocamo-nos a cantar, em coro, as alegrias da Serra:

Coro
Ai, trai lari, lai, lai,
Trai lari, lai, lai,
Lai, lai, lai!
1
Nesta vida tudo canta,
Comigo, ao desafio:
Canta a pastora na serra
E a lavadeira no rio.
2
É a voz do pintassilgo
Que me vem a despertar,
Logo ao nascer do sol,
No silvado, a cantar!

Pode dizer-se que o Francisco recebeu o dom da contemplação.

3
De noite, canta a coruja
Que me quer assustar!
Na escamisada, canta
A rapariga ao luar!
4
O rouxinol, na campina,
Passa o dia a cantar!
Canta a rola no bosque,
Canta o carro a chiar!
5
A serra é um jardim
Todo o dia a sorrir!
São as gotas do orvalho,
Nas montanhas, a luzir!

Terminada a primeira vez, íamos a repetir, mas o Francisco interrompeu:

– Não cantemos mais. Desde que vimos o Anjo e Nossa Senhora, já não me apetece cantar.

Influência da segunda Aparição

Na segunda aparição, 13 de Junho (de) 1917, o Franciscoimpressionou-se muito com a comunicação do reflexo que já disse no segundo escrito que foi no momento em que Nossa Senhora disse:
– O Meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus.

Ele parecia não ter, no momento, a compreensão dos factos, talvez por não Ihe ser dado ouvir as palavras que os acompanhavam. Por isso, depois, perguntava: 

– Para que estava Nossa Senhora com um coração na mão, espalhando pelo mundo essa luz tão grande que é Deus? Tu estavas com Nossa Senhora na luz que descia para a terra, e a Jacinta, comigo, na que subia para o Céu.

É que – Ihe respondi – tu, com a Jacinta, vais breve para o
Céu e eu fico com o Coração Imaculado de Maria mais algum tempo
na terra.
– Quantos anos cá ficas? – perguntava.
– Não sei; bastantes.
– Foi Nossa Senhora que o disse?
– Foi. E eu vi-o nessa luz que nos meteu no peito.
E a Jacinta confirmava isto mesmo, dizendo:
– É assim, é! Eu também assim o vi!

Por vezes, dizia:

– Esta gente fica tão contente só por a gente Ihe dizer que Nossa Senhora mandou rezar o terço e que aprendesses a ler! O que seria, se soubessem o que Ela nos mostrou em Deus, no Seu Imaculado Coração, nessa luz tão grande! Mas isso é segredo, não se lhes diz. É melhor que ninguém o saiba.
Desde esta aparição, começamos a dizer, quando nos perguntavam se Nossa Senhora nos não tinha dito mais nada: – Sim, disse, mas é segredo. Se nos perguntavam o motivo por que era segredo, encolhíamos os ombros e, baixando a cabeça, guardávamos silêncio. Mas, passado o dia 13 de Julho, dizíamos:

– Nossa Senhora disse-nos que não o disséssemos a ninguém
– referindo-nos, então, ao segredo imposto por Nossa Senhora.

Francisco encoraja a Lúcia

No decorrer deste mês, aumentou consideravelmente a afluência de gente e, com ela, os contínuos interrogatórios e contradições. O Francisco sofria bastante com isso e lamentava-se, dizendo para
a irmã:
– Que pena! Se tu te tivesses calado, ninguém o sabia. Se não fosse por ser mentira, dizíamos a toda a gente que não vimos nada e tudo acabava. Mas isso não pode ser! Quando me via perplexa com a dúvida, chorava e dizia: – Mas como é que tu podes pensar que é o demônio? Não viste Nossa Senhora e Deus naquela luz tão grande? Como é que nós vamos a ir sem ti, se tu é que tens de falar?

Depois da ceia, já noite, voltou ainda a minha casa, chamou-me à velha eira e disse-me: 
– Olha: tu amanhã vais? 
– Não vou; já te disse que não volto mais. 
– Mas que tristeza! Por que é que tu agora pensas assim? Não vês que não pode ser o demônio? Deus já está tão triste com tantos pecados e, agora, se tu não vais, fica ainda mais triste! Anda, vai!
 – Já te disse que não vou; escusas de mo pedir.
E meti-me bruscamente em casa. Passados alguns dias, dizia-me:
– Credo! Aquela noite não dormi nada; passei-a toda a chorar e a rezar, para que Nossa Senhora te fizesse ir. 

Influência da terceira Aparição

Na terceira aparição, o Francisco pareceu ser o que menos se impressionou com a vista do inferno, embora Ihe causasse também uma sensação bastante grande. O que mais o impressionava ou absorvia era Deus, a Santíssima Trindade, nessa luz imensa que nos penetrava no mais íntimo da alma. Depois, dizia:

  – Nós estávamos a arder, naquela luz que é Deus, e não nos queimávamos. Como é Deus!!! Não se pode dizer! Isto sim, que a gente nunca pode dizer! Mas que pena Ele estar tão triste! Se eu O
pudesse consolar!...

Um dia perguntaram-me se Nossa Senhora nos tinha mandado rezar por os pecadores. Eu respondi que não. Logo que pôde, enquanto interrogavam a Jacinta, chamou-me e disse-me:

– Tu agora mentiste. Como é que disseste que Nossa Senhora não nos mandou rezar por os pecadores? Então Ela não nos mandou rezar por os pecadores?!
– Por os pecadores, não. Mandou-nos rezar por a paz, para acabar a guerra. Por os pecadores, mandou-nos fazer sacrifícios. 
– Ah! É verdade. Já estava a pensar que tinhas mentido. 

Comportamento em Ourém

Já disse como ele passou o dia a chorar e a rezar, numa aflição talvez maior que a minha, quando meu pai foi intimado a levar-me a Vila Nova de Ourém.

Na prisão, mostrou-se bastante animado e procurava animar a Jacinta nas horas de mais saudade.
Quando rezámos o terço, na prisão, ele viu que um dos presos estava de joelhos com a boina na cabeça. Foi junto dele e disse-lhe: – Vossemecê, se quer rezar, tem de tirar a boina. E o pobre homem, sem mais, entrega-lha, e ele põe-na em cima do seu carapuço, sobre um banco. Enquanto interrogavam a Jacinta, ele dizia-me, com imensa paz e alegria: – Se nos matarem, como dizem, daqui a pouco estamos no Céu! Mas que bom! Não me importa nada. E passado um momento de silêncio: – Deus queira que a Jacinta não tenha medo. Vou a rezar uma Ave-Maria por ela! Sem mais, tira o carapuço e reza. O guarda, ao vê-lo em atitude de rezar, pergunta-lhe: – Que estás a dizer?
– Estou a rezar uma Ave-Maria, para (que) a Jacinta não tenha medo. O guarda fez um gesto de desprezo e deixou correr.

Quando, depois do regresso de Vila Nova de Ourém, começamos a sentir que a presença do sobrenatural nos envolvia, sentindo que alguma comunicação celeste se aproximava, o Francisco mostrava-se preocupado por a Jacinta não estar. – Que pena – dizia –, se a Jacinta não vem a tempo!
E pediu ao irmão que fosse depressa. – Diz-lhe que venha a correr. Depois do Irmão partir, dizia-me:
– A Jacinta, se não vem a tempo, vai ficar muito triste.

Em 11 de Agosto, o pai da Lúcia levou-a ao Administrador, mas o tio Marto foi sozinho. Depois da aparição, disse para a irmã, que queria ficar ali o resto da tarde: – Não. Tu tens de ir embora, porque a Mãe, hoje, não te deixou vir com as ovelhas. E, para a animar, foi acompanhá-la a casa. Quando, na prisão, vimos que se passava a hora do meio-dia e que não nos deixavam ir à Cova da Iria, o Francisco dizia:– Talvez que Nossa Senhora nos venha a aparecer aqui. Mas, no dia seguinte, manifestava grande pena e dizia, quase a chorar: – Nossa Senhora é capaz de ter ficado triste, por a gente não ir à Cova de Iria, e não voltar mais a aparecer-nos. E eu gostava tanto de A ver! 

Quando a Jacinta, na cadeia, chorava com saudades da mãe e da família, ele procurava animá-la e dizia: – A Mãe, se não a tornarmos a ver, paciência! Oferecemos pela conversão dos pecadores. O pior é se Nossa Senhora não volta mais! Isso é que mais me custa! Mas também o ofereço pelos pecadores.

Depois, perguntava-me: – Olha: Nossa Senhora não voltará mais a aparecer-nos? – Não sei. Penso que sim. – Tenho tantas saudades d’Ela! A aparição nos Valinhos foi, pois, para ele, de dobrada alegria. Sentia-se torturado pelo receio de que Ela não voltasse. Depois, dizia: – Decerto não nos apareceu no dia 13 para não ir à casa do Senhor Administrador, talvez por ele ser tão mau.

Influência das últimas Aparições

Quando, depois do dia 13 de Setembro, lhe disse que em Outubro vinha também Nosso Senhor, ele mostrou grande alegria: – Ai que bom! Só O vimos duas vezes ainda e eu gosto tanto d’Ele!

De vez em quando perguntava:  Refere-se à aparição dos meses de Junho e Julho. Viram Nosso Senhor, na luz misteriosa da Mãe de Deus. – Ainda faltarão muitos dias para o dia 13? Estou ansioso que venha, para ver outra vez a Nosso Senhor. Depois, pensava um pouco, e dizia: – Mas, olha: Ele ainda estará tão triste?! Tenho tanta pena que esteja assim tão triste! Eu ofereço-Lhe todos os sacrifícios que posso arranjar. Às vezes, já nem fujo dessa gente, para fazer sacrifícios. Depois do dia 13 de Outubro, dizia: – Gostei muito de ver Nosso Senhor. Mas gostei mais de O ver naquela luz onde nós estávamos também. Daqui a pouco, já Nosso Senhor me leva lá pró pé d’Ele e, então, vejo-O sempre.

Um dia, perguntei-lhe: – Por que é que tu, quando te perguntam alguma coisa, baixas a cabeça e não queres responder? 
– Porque antes quero que o digas tu e mais a Jacinta. Eu não ouvi nada. Só posso dizer que sim, que vi. E, depois, se digo alguma coisa dessas que tu não queres? 
De vez em quando, afastava-se de nós dissimuladamente. Quando lhe dávamos pela falta, punhamo-nos à sua procura, chamando por ele. Lá nos respondia, detrás duma paredita ou de algum arbusto ou silvado, onde estava de joelhos, a rezar.
  – Por que não nos dizes para rezarmos contigo? – lhe perguntava, às vezes.
– Porque gosto mais de rezar sozinho. 

Já contei, em as notas sobre o livro «Jacinta» o que se passou em uma propriedade chamada Várzea. Parece-me que não é preciso repeti-lo aqui. Um dia, passávamos, para minha casa, em frente da casa de minha madrinha de batismo. Ela acabava de fazer a água-mel e chamou-nos para nos dar um copo dela. Entramos, e o Francisco foi o primeiro a quem ela deu o copo, para que bebesse. Pega nele e, sem beber, passa-o à Jacinta, para que beba primeiro, comigo; e, entretanto, numa meia volta, desapareceu. – Onde está o Francisco? – pergunta a minha Madrinha. – Não sei; não sei. Ainda agora aqui estava!

Não apareceu. E a Jacinta, comigo, agradecendo a dádiva, lá fomos ter com ele, onde não duvidamos um instante que estaria, sentado na beira do poço já tantas vezes mencionado. – Francisco, tu não bebeste a água-mel! A Madrinha chamou tantas vezes por ti, mas não apareceste!

– Quando peguei no copo, lembrei-me de repente de fazer aquele sacrifício para consolar a Nosso Senhor e, enquanto vocês bebiam, fugi para aqui.

Casos e canções

Entre minha casa e a de Francisco vivia meu padrinho Anastácio, casado com uma mulher de bastante idade, a quem o Senhor não tinha dado descendência. Lavradores bastante ricos, não
precisavam de trabalhar. Meu pai tomava-lhes conta da lavoura e guiava-lhes por lá os jornaleiros. Agradecidos por isso tinham uma predileção para comigo, sobretudo a dona da casa, a quem chamava
a Madrinha Teresa.

Se para lá não ia de dia, tinha que dormir a noite, pois ela dizia não poder passar sem o seu torrãozinho de carne – assim me chamava. Nos dias de festa, gostava de me enfeitar com o seu cordão d’ouro e as grandes argolas que me caíam bastante abaixo dos ombros e o lindo chapeuzito na cabeça, coberto de contas d’ouro que sujeitavam imensas penas de várias cores. Nos arraiais, não
aparecia outra mais enfeitada; e minhas irmãs, com a Madrinha Teresa, reviam-se nisso. As outras crianças cercavam-me em numerosos grupos, admirando o brilho de tantos enfeites. A dizer a
verdade, eu também gostava bastante da festa, e a vaidade era o meu pior enfeite. Todos mostravam simpatia e estima por mim, menos uma orfãzinha de quem a Madrinha Teresa se tinha encarregado,
ao morrer-lhe a mãe. Ela parecia temer que lhe viesse a tirar parte da herança que ela esperava e decerto não se teria enganado, se o bom Deus me não tivesse destinado uma outra herança
bem mais preciosa. Logo que se começou a espalhar a notícia das aparições, o Padrinho mostrou-se indiferente e a Madrinha completamente contrária. Mostrava-se descontente por tais invenções, como ela dizia. Comecei, por isso, a escapar-me quanto podia, de sua casa e, comigo, começaram a desaparecer esses grupos de crianças que aí, com frequência, se juntavam, e que a Madrinha tanto gostava de ver dançar e cantar, dando-lhes figos secos, nozes, amêndoas,
castanhas, fruta, etc. Passando, pois, um domingo de tarde, por junto de sua casa,
com o Francisco e a Jacinta, chamou-nos: – Venham cá, meus intrujõezinhos, venham cá! Há já tanto
tempo que cá não vêm! E lá nos foi a dar os seus mimos. Parecendo adivinhar a nossa chegada, as outras crianças começaram-se a juntar. A boa madrinha, contente por tornar a ver em sua casa essa reunião que havia tanto tempo se havia dispersado, depois de nos mimosear com várias coisas, quis ver-nos dançar e cantar. – Vamos lá: que há-de ser? que não há-de ser? – Escolheu ela: – Os parabéns desenganados. Um desafio: os pequenos dum lado, as pequenas do outro.

I
Coro

Tu és o sol desta esfera,
Não lhe negues os teus raios.
Sorrisos de primavera – ah!!!
Não convertas em desmaios!
1
Parabéns à rapariga,
Com fragrância, ao novo sol,
Porque, risonha, adivinha
Os mimos doutro arrebol.
2
É ano rico de flores,
Rico de frutas e bem!
E o novo, nos seus alvores,
Rico de esperanças te vem.
3
São o teu melhor presente,
Teus melhores parabéns!
Cinge com eles a fronte,
É a melhor c’roa que tens.
4
Se o passado te foi lindo,
Futuro mais lindo tens!
Parabéns pelo findo,
Pelo que entra, parabéns!
5
Nesta vida, flor do Atlântico,
Neste amigável festim,
Celebre-se, em ledo cântico.
O jardineiro e o jardim!
 6
Compadecem-te as flores
De teu paterno torrão!
Teu lar de castos amores,
Teus laços de coração.
 

II
Coro
Achas acto, cavalheiro,
Que ao ver surdir o penal,
A Berlenga e o Carvoeiro – ah!!!
Apaguem o seu farol?
1
Mas o mar em frol rebenta,
Remoinho, eterno fulcro!
Cada norte é uma tormenta,
Cada tormenta um sepulcro.

A Berlenga é uma pequena ilha no Atlântico, perto do Cabo Carvoeiro, em
Peniche.

2
Tristes morros da Papoa,
Estelas e Farilhões!
Que tragédia não ressoa
Cada um de seus cachões!
3
Cada escolho, nestas águas,
É de morte um presságio!
Cada vaga canta mágoas,
Cada cruz lembra um naufrágio.
4
Pois tu queres ser mais duro,
Queres sumir-te, e és luz
Que, da vida, em mar escuro,
Tanto barquinho conduz?!

 III
Coro
E fico d’olhos enxutos
Ao falar em despedida!
O hesitar foi de minutos - ah!!!
O imolar-me é de toda a vida.
 1
Vai, mas diz ao Céu que corte
Da sua graça o raudal!
E as flores mirre de morte,
Por não seres seu canal.

As Estelas e Farilhões são ilhéus próximos da Berlenga.

Vai, que fico em desconforto,
Enlutado o Santuário!
Dobrará o bronze a morte,
Na grimpa do campanário.
3
Mas apenas me deixas
Da triste Igreja, no Adro,
Vou deixar eternas queixas,
Escrevendo em negro quadro!
4
Foi jardim risonho e belo
Este solo hoje sem flor!
Não lhe faltou o desvelo;
Faltou ele ao seu cultor.
5
Espero da Providência
Futurosos carinhos!
Esperem-nos, com preferência,
As que deixam pátrios ninhos.

Francisco, o pequeno moralista

Ao som do animado descante, foram-se juntando as vizinhas; e, ao terminar, pediram uma nova repetição. Mas o Francisco aproximou-se de mim e disse-me: – Não cantemos mais isso. Nosso Senhor decerto agora não gosta que cantemos essas coisas. E lá nos escapamos como pudemos, por entre a outra criançada, para o nosso poço predileto.

Na verdade, eu, agora, que por obediência acabo de o escrever, cubro a cara com vergonha. Mas V. Ex.cia Rev.ma, a pedido do Senhor Dr. Galamba, achou por bem mandar-me escrever os cantares profanos que sabíamos. Aí vão! Não sei para quê. Mas basta-me saber que é para cumprir a vontade de Deus. Entretanto, aproximou-se o Carnaval de 1918. As raparigas e rapazes juntaram-se, ainda esse ano, para a costumada cozinhada e brincadeira desses dias. Cada um levava de sua casa uma coisa: uns, azeite; outros, farinha; outros, carne; etc. e junto tudo em uma casa, para isso destinada, as raparigas aí cozinhavam um faustoso banquete. E nesses dias era comer e bailar até que horas
da noite, em especial no último dia. As crianças de 14 anos para baixo tinham a sua festa noutra
casa, à parte. Vieram, pois, várias a convidar-me para com elas organizar a festa. Recusei, a princípio; mas, levada por uma cobarde condescendência, cedi às instâncias de várias, em especial duma
filha e dois filhos dum homem da Casa Velha, José Carreira, que punha a sua casa à nossa disposição. Ele mesmo, com sua mulher, insistiam para que fosse. Cedi, pois, e lá fui com um bom rancho a
ver o local: uma boa sala ou quase salão para a brincadeira e um bom pátio para o jantar. Combinou-se tudo e de lá vim, exteriormente em grande festa, mas, no íntimo, com a consciência a dar-me gritos
de reprovação. Ao chegar junto da Jacinta e do Francisco, disse-lhes o que se tinha passado.
– E tu voltas a essas cozinhadas e brincadeiras? – me perguntou, com seriedade, o Francisco. – Já te esqueceste que prometemos nunca mais lá voltar?! – Eu não queria ir; mas como bem vês que me não deixam, a pedir-me que vá; e não sei como fazer. Na verdade, as instâncias eram muitas, e as amigas que, para brincar comigo, se juntavam, não eram menos. Vinham até de várias aldeias bem distantes: da Moita, uma Rosa e Ana Caetano e Ana Brogueira; da Fátima, duas filhas de Manuel Caracol; de
Boleiros (10), duas filhas de Manuel da Ramira e duas de Joaquim Chapeleta; da Amoreira, duas de Silva; dos Currais, uma Laura Gato; Josefa Valinho e várias outras, cujos nomes não recordo, de
Boleiros, da Lomba, da Pederneira, etc.; e isto fora as que se juntavam da Eira da Pedra, Casa Velha e Aljustrel. Como, assim de Do Montelo e não de Boleiros. A própria Lúcia o confirma mais adiante: “Quiseram levar-nos um dia, ao Montelo, a casa dum homem chamado Joaquim Chapeleta...” repente, desenganar tudo isto, que parecia não saber divertir-se sem mim, e fazer-lhes compreender que era preciso acabar para sempre com tais reuniões?! Deus inspirou-o ao Francisco: – Sabes como vais a fazer? Toda a gente sabe que Nossa Senhora te apareceu; por isso, dizes que Lhe prometeste não tornar mais a bailar e que, por isso, não vais. Depois, nesses dias, escapamo-nos para a Lapa do Cabeço; lá ninguém nos encontra. Aceitei a proposta; e dada a minha decisão, ninguém pensou
mais em organizar tal assembleia. Era Deus a abençoar. E essas amigas, que antes me procuravam para se divertir, agora seguiam-me e vinham procurar-me a casa, aos Domingos pela tarde, para ir com elas rezar o terço à Cova da Iria.

Amor ao recolhimento e à oração O Francisco era de poucas palavras; e para fazer a sua oração e oferecer os seus sacrifícios, gostava de se ocultar até da Jacinta e de mim. Não poucas vezes o íamos surpreender, de trás duma parede ou dum silvado, para onde, dissimuladamente, se tinha escapado, de joelhos, a rezar ou a pensar, como ele dizia, em Nosso Senhor triste por causa de tantos pecados. Se lhe perguntava: – Francisco, por que não me dizes para rezar contigo e mais a Jacinta? – Gosto mais – respondia – de rezar sozinho, para pensar e consolar a Nosso Senhor que está tão triste.

Um dia, perguntei-lhe: – Francisco, tu, de que gostas mais: de consolar a Nosso Senhor ou converter os pecadores, para que não (vão) fossem mais almas para o inferno? – Gostava mais de consolar a Nosso Senhor. Não reparaste como Nossa Senhora, ainda no último mês, se pôs tão triste, quando disse que não ofendessem a Deus Nosso Senhor que já está muito ofendido?

Eu queria consolar a Nosso Senhor e depois converter os pecadores, para que não O ofendessem mais. Quando ia à escola, por vezes, ao chegar a Fátima, dizia-me: – Olha: tu vai à escola. Eu fico aqui na igreja, junto de Jesus escondido. Não me vale a pena aprender a ler; daqui a pouco vou para o Céu. Quando voltares, vem por cá chamar-me. O Santíssimo estava, então, à entrada da Igreja, do lado esquerdo. Metia-se entre a pia baptismal e o altar e aí o encontrava, quando voltava. (O Santíssimo estava aí por andar a Igreja em obras).

Depois que adoeceu, dizia-me, às vezes, quando, a caminho da escola, passava por sua casa: – Olha: vai à Igreja e dá muitas saudades minhas a Jesus escondido. Do que tenho mais pena é de não poder já ir a estar uns bocados com Jesus escondido. Um dia, ao chegar junto de sua casa, despedi-me dum grupo de crianças da escola que vinham comigo e entrei, para lhe fazer  uma visita e a sua irmã. Como tinha sentido o barulho, perguntou-me: – Tu vinhas com todos esses? – Vinha. – Não andes com eles, que podes aprender a fazer pecados. Quando saíres da escola, vai um bocado para o pé de Jesus escondido e depois vem sozinha. Um dia, perguntei-lhe: – Francisco, sentes-te muito mal?
– Sinto; mas sofro para consolar a Nosso Senhor. Ao entrar, um dia, com a Jacinta, no seu quarto, disse-nos: – Hoje falem pouco, que me dói muito a cabeça. – Não te esqueças de oferecer por os pecadores – Ihe disse a Jacinta. – Sim. Mas primeiro ofereço para consolar a Nosso Senhor, a
Nossa Senhora e depois, então, é que ofereço por os pecadores e por o Santo Padre. Outro dia, ao chegar, encontrei-o muito contente. – Estás melhor? – Não. Sinto-me muito pior. Já me falta pouco para ir para o Céu. Lá vou consolar muito a Nosso Senhor e a Nossa Senhora. A Jacinta vai a pedir muito por os pecadores, por o Santo Padre e por ti; e tu ficas cá, porque Nossa Senhora o quer. Olha: faz tudo o que Ela te disser. Enquanto a Jacinta parecia preocupada com o único pensamento
de converter pecadores e livrar almas do inferno, ele parecia só pensar em consolar a Nosso Senhor e a Nossa Senhora que Ihe tinha parecido estarem tão tristes.

Visão do demônio

Bem diferente é um facto que agora me está a lembrar. Andávamos, um dia, num sítio chamado a Pedreira e, enquanto as ovelhas pastavam, saltávamos de penedo em penedo, fazendo ecoar
a voz no fundo desses grandes barrancos. O Francisco, como era seu costume, retirou-se lá para a concavidade dum penedo. Passado um bom bocado, ouvimo-lo gritar e chamar por nós e por
Nossa Senhora. Aflitas pelo que Ihe teria acontecido, começamos a procurá-lo, chamando por ele.
– Onde estás? – Aqui! Aqui! Mas ainda nos levou tempo a encontrá-lo. Por fim, lá demos
com ele, a tremer de medo, ainda de joelhos, que, aflito, nem arte tinha para se pôr de pé.
– Que tens? Que foi? Com a voz meia sufocada pelo susto, lá disse: – Era um daqueles bichos grandes, que estavam no inferno, que estava aqui a deitar lume. Não vi nada, nem a Jacinta, por isso ri-me e disse-lhe: – Tu não queres nunca pensar no inferno, para não teres medo, e agora foste o primeiro a tê-lo!? Ele, quando a Jacinta se mostrava mais impressionada com a lembrança do inferno, costumava dizer-lhe: – Não penses tanto no inferno! Pensa antes em Nosso Senhor e Nossa Senhora. Eu não penso nele, para não ter medo.

E não mostrava ser nada medroso. Ia de noite, sozinho, a qualquer sítio escuro, sem mostrar dificuldade. Brincava com os lagartos e cobras que encontrava; fazia-as enrolar-se à volta dum pau;
deitava-lhes, nas covas das pedras, leite das ovelhas, para que o bebessem. Metia-se nas covas, à procura das louras das raposas, dos coelhos e ginetes, etc.  Fioretti de Fátima Dos passarinhos gostava muito; não podia ver que lhes roubassem os ninhos. Migava sempre parte do pão que levava para a
merenda, no cimo das pedras, para que eles o comessem; e, afastando-se, chamava por eles, como se o entendessem, e não queria que ninguém se aproximasse, para não lhes meter medo. – Coitadinhos! Estão cheios de fome – dizia, falando com eles. – Venham, venham comer! E eles, com o olho vivo que têm, não se faziam rogar; e lá vinham em grandes ranchos. Era, então, a sua alegria, vê-los voar
para o cimo das árvores, com o papinho cheio, a cantar, numa chilreada medonha que ele imitava com arte, fazendo coro com eles. Um dia encontramos um pequeno que trazia na mão um passarinho
que tinha apanhado. Cheio de pena, o Francisco prometeu-lhe dois vinténs, se o deitasse a voar. O rapaz aceitou o contrato, mas, antes, queria o dinheiro na mão. O Francisco voltou, então, a casa, da Lagoa da Carreira, que fica um pouco abaixo da Cova da Iria, a buscar os dois vinténs, para dar liberdade ao prisioneiro. Quando, depois, o viu voar, batia as palmas de contente e dizia: – Tem cautela! não te tornem a apanhar. Havia aí uma velhinha, a quem chamávamos Ti Mari’ Carreira,
a quem os filhos, às vezes, mandavam pastorear um rebanho de cabras e ovelhas. Estas, pouco domesticadas, às vezes tresmalhavam-se-lhe umas para cada lado. Quando a encontrávamos assim aflita, o Francisco era o primeiro a correr em seu auxílio. Ajudava-a a conduzir o rebanho à
pastagem, juntando-Ihe as que se tinham tresmalhado. A pobre velhinha desfazia-se em mil agradecimentos e chamava-lhe o seu Anjinho da guarda.  Quando por aí iam doentes, ele ficava cheio de pena e dizia: – Eu não posso ver assim esta gente. Faz-me tanta pena! Quando nos chamavam, para falar a algumas pessoas que nos procuravam, ele perguntava se eram doentes e dizia:
– Se são doentes, não vou! Não os posso ver, que me fazem muita pena! Digam-lhes que peço por eles. Quiseram levar-nos, um dia, ao Montelo, a casa dum homem chamado Joaquim Chapeleta. O Francisco não quis ir. – Eu não vou. Não posso ver essa gente a querer falar sem poder. (Este homem tinha a mãe muda). Quando voltei, à noitinha, com a Jacinta, perguntei a minha tia por ele. – Eu sei lá! Cansei-me de o procurar esta tarde. Vieram aí umas senhoras que vos queriam ver. Vocês não estavam. Ele sumiu-se; não foi capaz de aparecer. Agora procurem-no vocês. Sentamo-nos um pouco, num banco da cozinha, pensando ir depois à Loca do Cabeço, não duvidando que lá estaria. Mas, mal
minha tia sai de casa, fala-nos por um buraquito que tinha o forro do sótão. Tinha subido para lá, quando sentiu que vinha gente. Daí tinha presenciado tudo que se tinha passado e dizia-nos depois:
– Era tanta gente! Deus me livre, se me apanhavam cá sozinho! O que é que eu lhes havia de dizer?
(Havia na cozinha um alçapão por onde, de cima duma mesa e uma cadeira, era fácil subir para o sótão).

Outros casos

Como já disse, minha tia vendeu o seu rebanho primeiro que minha mãe. Desde aí, pela manhã, antes de sair, avisava a Jacinta e o Francisco do lugar da pastagem para onde ia, e eles, logo que
se podiam escapar, lá iam ter. Um dia, quando cheguei, já lá estavam à minha espera.  – Ah! Como viestes tão cedo? – Vim – respondeu o Francisco –, porque não sei como é: antes, não me importava muito de ti, vinha por causa da Jacinta mas agora, pela manhã, já nem posso dormir com a pressa de vir para o pé de ti. Passados os dias 13 das aparições, nas vésperas dos outros dias 13, dizia-nos: – Olhem:amanhã, logo pela manhãzinha, escapo-me pelo quintal para a Lapa do Cabeço e vocês, logo que possam, vão lá ter. Ai, meu Deus! Eu estava já a escrever as coisas da sua doença, tão próxima à morte, e agora vejo que voltei aos alegres tempos da Serra, entre o meigo chilrear dos passarinhos. Peço desculpa. Escrevo para aqui o que me vai lembrando, à maneira do caranguejo que anda para trás e para diante, sem se preocupar com o termo da jornada.

O trabalho deixo-o para o Senhor Dr. Galamba, se por acaso quiser daqui aproveitar alguma coisa. Suponho que pouco ou nada será. Volto, pois, à sua doença. Mas, antes, ainda uma outra coisa do seu breve tempo de escola. Saio, um dia, de casa, e encontro-me com minha irmã Teresa, casada, então, havia pouco tempo, na Lomba. Vinha a pedido duma outra mulher, dum lugarejo vizinho, a quem tinham prendido um filho, acusando-o não me lembro de que crime, pelo qual, se não se justificava a sua inocência, seria condenado ao desterro ou, pelo menos, a um considerável número de anos de prisão. Pedia-me, pois, com insistência, em nome da pobre mulher a quem ela desejava comprazer, que lhe alcançasse esta graça de Nossa Senhora. Recebido o recado, parti para a escola e, pelo caminho, contei a meus primos o que se passava. Ao chegar a Fátima, diz-me o Francisco: – Olha: enquanto que vais à escola, eu fico com Jesus escondido e cá Lhe peço isso. Ao sair da escola, fui chamá-lo e perguntei-lhe: – Pediste aquela graça a Nosso Senhor?

– Pedi. Diz à tua Teresa que daqui a poucos dias ele vem para casa. Efectivamente, daí a alguns dias, o pobre rapaz estava em casa e, no dia 13, estava, com toda a família, a agradecer a Nossa Senhora a graça recebida. Um outro dia, ao sair de casa, notei que o Francisco andava muito devagar. – Que tens? – lhe perguntei – Parece que não podes andar! – Dói-me muito a cabeça e parece que vou a cair.
– Então não venhas; fica em casa. – Não fico! Quero antes ficar na Igreja, com Jesus escondido,
enquanto que tu vais à escola. Num desses dias que o Francisco, já doente, conseguiu ainda
dar os seus passeios, fui com ele à Lapa do Cabeço e aos Valinhos. Na volta, ao chegar a casa, encontramo-la cheia de gente e uma pobre mulher que, junto duma mesa, fingia que benzia inúmeros
objectos de piedade: terços, medalhas, crucifixos, etc. A Jacinta comigo fomos logo cercadas por numerosas pessoas que nos queriam interrogar. O Francisco foi apanhado por essa benzilheira que
o convidou a ajudá-la. – Eu não posso benzer – lhe respondeu com seriedade – e vossemecê também não! São só os Senhores Padres. A frase do pequeno espalhou-se imediatamente por entre a
multidão, como se ecoasse por meio dalgum porta-voz e a pobre mulher teve que se retirar imediatamente, entre os insultos dos que Ihe exigiam os objectos que acabavam de Ihe entregar.
Já disse, no escrito da Jacinta, como ele conseguiu ainda ir alguma vez à Cova de Iria, como usou e entregou a corda, como, num sufocante dia de calor, foi o primeiro a oferecer o sacrifício de
não beber e como, por vezes, recordava à irmã a ideia de sofrer por os pecadores, etc. Suponho que não é por isso necessário repeti-lo aqui. Estava um dia a fazer-lhe um pouco de companhia, junto de
sua cama, com a Jacinta que se tinha levantado um pouco. De repente, vem sua irmã Teresa avisar que, pela estrada, vem uma multidão de gente que decerto vem à nossa procura. Logo que ela
saiu, digo-lhes: – Bem! Vocês atendam-nos cá; eu vou a esconder-me. A Jacinta conseguiu ainda correr atrás de mim, e lá nos fomos meter dentro duma dorna que estava tombada junto da porta que
dá para o quintal. Não tardamos a ouvir o ruído das pessoas que, andando a ver a casa, saíram para o quintal e estiveram mesmo encostadas à dita dorna que nos salvou, por ter a boca voltada
para o lado oposto. Quando sentimos que tinham ido embora, saímos do nosso esconderijo e lá fomos ter com o Francisco que nos informou do que se tinha passado. – Era muita gente e queriam que eu lhes dissesse onde vocês estavam, mas eu também o não sabia. Queriam ver-nos e pedir-nos
muitas coisas. Era também uma mulher do Alqueidão que queria a cura dum doente e a conversão dum pecador. Por esta mulher peço eu; vocês peçam lá por os outros que são muitos. Esta mulher apareceu pouco depois da morte do Francisco. Pediu-me para Ihe ir dizer qual era a sua campa, pois queria ir lá agradecer-lhe as duas graças que Ihe tinha pedido. Íamos, um dia, a caminho da Cova de Iria e, ao sair um pouco de Aljustrel, fomos surpreendidos por um grupo de gente, em uma
curva da estrada, que, para nos verem e ouvirem melhor, puseram a Jacinta comigo em cima duma parede. O Francisco recusou deixar-se colocar lá em cima, como se tivesse medo de cair. Depois,
foi-se escapando, pouco e pouco, e encostou-se a um velho muro que estava em frente. Uma pobre mulher e um rapaz, ao verem que não conseguiam falar-nos em particular, como desejavam, foram ajoelhar-se diante dele, a pedir-lhe que alcançasse de Nossa Senhora a cura do pai e a graça de não ir para a guerra (era mãe e filho). O Francisco ajoelha também, tira o carapuço e pergunta se (querem) rezar com ele o terço. Dizem que sim e começam a rezar; dentro em pouco, toda aquela gente, deixando-se de perguntas curiosas, está também de joelhos a rezar. Depois, acompanham-nos à Cova de Iria. Pelo caminho, rezam connosco outro terço e, lá no local, outro e despedem-se satisfeitos. A pobre mulher promete voltar ali a agradecer a Nossa Senhora as graças que pede, se as alcança. E voltou várias vezes, acompanhada não só do filho, mas também do marido, já bem de saúde. (Eram da freguesia de S. Mamede e chamávamo-lhes os Casaleiros).

Francisco adoece

Na doença, o Francisco mostrou-se sempre alegre e contente. Às vezes, perguntava-lhe: – Sofres muito, Francisco? – Bastante; mas não importa. Sofro para consolar a Nosso Senhor; e depois, daqui a pouco, vou para o Céu! – Lá, não te esqueças de pedir a Nossa Senhora que me leve para lá também depressa. – Isso não peço! Tu bem sabes que Ela não te quer lá ainda. Nas vésperas de morrer, disse-me: – Olha: estou muito mal; já me falta pouco para ir para o Céu. – Então vê lá: não te esqueças de lá pedir muito por os pecadores, por o Santo Padre, por mim e pela Jacinta. – Sim, eu peço. Mas olha: essas coisas pede-as à Jacinta, que eu tenho medo de me esquecer, quando vir a Nosso Senhor! E
depois antes O quero consolar. Um dia de madrugada, cedo, sua irmã Teresa vai chamar-me:
– Vem cá depressa. O Francisco está muito mal e diz que te quer dizer uma coisa!

Vesti-me à pressa e lá fui. Pediu à mãe e irmãos que saíssem do quarto, que era segredo o que me queria. Saíram e ele disse-me: – É que me vou a confessar para comungar e morrer depois.
Queria que me dissesses se me viste fazer algum pecado e que fosses perguntar à Jacinta se me viu ela fazer algum. – Desobedeceste algumas vezes a tua mãe, – lhe respondi – quando ela te dizia que te deixasses estar em casa e tu te escapavas para o pé de mim e para te ires esconder. – É verdade! tenho esse. Agora vai perguntar à Jacinta se ela se lembra de mais algum. Lá fui, e a Jacinta, depois de pensar um pouco, respondeu-me: – Olha: diz-lhe que, ainda antes de Nossa Senhora nos aparecer,
roubou um tostão ao pai, para comprar o realejo ao José Marto, da Casa Velha; e que, quando os rapazes de Aljustrel atiraram pedras aos de Boleiros, ele também atirou algumas. Quando lhe dei este recado da Irmã, respondeu: – Esses já os confessei, mas torno a confessá-los. Se calhar, é por causa destes pecados que eu fiz que Nosso Senhor está tão triste! Mas eu, ainda que não morresse, nunca mais os tornava a fazer. Agora estou arrependido. E pondo as mãos, rezou a oração:
– Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as alminhas todas para o Céu, principalmente as que mais precisarem. Olha: pede tu também a Nosso Senhor que me perdoe os meus pecados. – Peço, sim; está descansado. Se Nosso Senhor tos não tivesse
já perdoado, não dizia Nossa Senhora, ainda outro dia, à Jacinta, que te vinha buscar muito em breve para o Céu. Agora, eu vou à Missa e lá peço a Jesus escondido por ti. – Olha: pede-Lhe para o Senhor Prior me dar a Sagrada Comunhão. – Pois sim. Quando voltei da Igreja, já a Jacinta se tinha levantado e estava sentada na sua cama. Logo que me viu, perguntou-me: – Pediste a Jesus escondido para o Senhor Prior me dar a Sagrada Comunhão? – Pedi. – Depois, no Céu, peço eu por ti. – Pedes?! Ainda outro dia disseste que não pedias! – Isso era para te levar para lá breve; mas, se tu queres, eu
peço, e depois Nossa Senhora faz como quiser. – Pois quero; tu, pede. – Pois sim; fica descansada, que eu peço. Deixei-os ficar e fui para as minhas ocupações diárias de trabalho e escola. Quando voltei, à noitinha, estava já radiante de alegria. Tinha-se confessado e o Senhor Prior tinha prometido trazer-lhe, no dia seguinte, a Sagrada Comunhão. Depois de comungar, no dia seguinte, dizia para a irmãzinha: – Hoje sou mais feliz que tu, porque tenho dentro do meu peito
a Jesus escondido. Eu vou para o Céu; mas lá vou pedir muito a  Nosso Senhor e a Nossa Senhora que vos levem também para lá depressa. Este dia passei-o quase todo com a Jacinta, junto de sua cama. Como já não podia rezar, pediu-nos que rezássemos nós o terço por ele. Depois, disse-me:
– Decerto, no Céu, vou ter muitas saudades tuas! Quem dera que Nossa Senhora te levasse também para lá breve! – Não tens, não. Imagine-se! Ao pé de Nosso Senhor e de Nossa Senhora que são tão bons! – Pois é! Se calhar, nem me lembro. E agora acrescento eu: – Se calhar, nem mais se lembrou !!! Paciência! !!

Morte santa

Já de noite, despedi-me dele. – Francisco, adeus! Se fores para o Céu esta noite, não te
esqueças lá de mim, ouviste? – Não te esqueço, não; fica descansada. E agarrando-me a mão direita, apertou-ma com força, por um bom bocado, olhando para mim com as lágrimas nos olhos.
– Queres mais alguma coisa? – lhe perguntei, com as lágrimas a correr-me também já pelas faces.
– Não – me respondeu com voz sumida. Como a cena se estava a tornar demasiado comovedora, minha tia mandou-me sair do quarto. – Então adeus, Francisco! Até ao Céu!
– Adeus, até ao Céu!... E o Céu aproximava-se. Para lá voou no dia seguinte, nos braços da Mãe celeste.

Este «dia seguinte», foi 4 de Abril de 1919. A saudade não se descreve; é um espinho triste a pungir o
coração pelos anos além! é a lembrança do passado ecoando sempre na eternidade. Era de noite... e eu, plácida, sonhava Que em tão festivo, suspirado dia, Celestial enlace, em grã porfia, Entre nós com os Anjos se agitava! Que áurea coroa – ninguém ideava Das florinhas que a terra produzia!
Que igualasse a que o Céu lhe oferecia No angélico primor que a saudade deixava! De lábios maternos... gozo, sorriso! No celeste paraíso... vive em Deus! D’amor encantado, de gozos sob’ranos,
Passou estes anos... tão breves... Adeus!!!

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