Em mim eu não vivo já, E sem Deus viver não posso;
Pois sem ele e sem mim quedo, Este viver que será?
Mil mortes se me fará, Pois minha mesma vida espero,
Morrendo porque não morro.
Esta vida que aqui vivo, É privação de viver;
E, assim, é contínuo morrer, Até que viva contigo.
Ouve, meu Deus, o que digo, Que esta vida não a quero,
Pois morro porque não morro.
Ausente estando eu de ti, Que vida poderei ter
Senão morte padecer, A maior que jamais vi?
Pena se assim eu persevero, Morrerei porque não morro.
O peixe que da água sai Nenhum alívio carece
Que na morte que padece, Afinal a morte lhe vale.
Que morte haverá que se iguale Ao meu viver lastimoso,
Pois se mais vivo, mais morro?
Quando penso aliviar-me Vendo-te no Sacramento,
Faz-se em mim mais sentimento De não poder-te gozar;
Tudo é para mais penar, Por não ver-te como quero,
E morro porque não morro.
Se me deleito, Senhor, Com a esperança de ver-te,
Vendo que posso perder-te Redobre-se em mim a dor;
Vivendo em tanto temor E esperando como espero,
Morro sim, porque não morro.
Livra-me já desta morte, Meu Deus, entrega-me a vida;
Não ma tenhas impedida Por este laço tão forte;
Olha que peno por ver-te, O meu mal é tão inteiro
Que morro porque não morro.
Chorarei já minha morte, Lamentarei minha vida,
Enquanto presa e retida Por meus pecados está.
Oh, meu Deus! Quando será Que eu possa dizer deveras:
Vivo porque já não morro?
Autor: São João da Cruz (1542-1591)
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